Sinopse: O diário de Lili Elbe tornou-se a base das fantásticas memórias Man into a woman ["Homem em uma mulher"], uma biografia parcialmente ficcional, na qual David Ebershoff baseou seu livro, "A Garota Dinamarquesa", que, posterior-mente, foi a inspiração para este filme. Nesta cinebiografia, Eddie Redmayne é Lili Elbe, nascida Einar Mogens Wegener, que se encontra em um casamento com Gerda Wegener [Alicia Vikander], no qual, ao longo do de sua vida amorosa e profissional, progride a descoberta de si mesma e eventualmente se submetendo ao seu maior desejo: tornar-se uma mulher. Lili Elbe é considerada pioneira transgênero, uma vez que foi a primeira mulher a realizar a cirurgia de redesignação de sexo.
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Vou iniciar esta seção sobre filmes e Psiquiatria, com um dos temas mais importantes da nossa atualidade. Não podemos dizer que é um assunto “atual”, pois é algo que existe na nossa sociedade desde sempre, ainda que nunca tenha sido abordado com tanta efetividade quanto nos dias de hoje.
Nesta categoria do blog, não apenas colocarei em jogo minha opinião como médica, mas, igualmente, como ser humano e cinéfila.
Não entrarei, nesta postagem, no mérito do que são considerados transtornos sexuais – pois é algo deve ser abordado à parte, com calma e atenção –, entretanto posso deixar claro, que a transexualidade não faz parte deles.
“Não?!” Não, não faz; posteriormente explicarei em Relatos Médicos.
Ingressando, de fato, no assunto do filme A Garota Dinamarquesa, posso afirmar que esse é um dos poucos com uma abordagem “psiquiátrica”, que mais se aproximam da realidade, sem distorções incoerentes do que verdadeiramente se trata.
Por que é uma abordagem psiquiátrica, se havia dito, que não se refere a um transtorno psiquiátrico? Apenas por aqui considerarmos o sofrimento, que a condição inflige àquele ser humano específico.
A questão toda em Lili Elbe não é a sua categoria transgênero, mas, sim, a amargura de estar contida em um corpo que não reconhece como seu.
Como podemos ver no filme, Einar Wegener é um pintor de renome, que possui um casamento estável e – ao que se mostra inicialmente – feliz, aparentando satisfeito com a sua realidade.
A percepção do ser humano de si mesmo ocorre logo nos primeiros anos de existência, quando começamos a nos dar conta, instintivamente, da existência do sexo feminino e masculino. Vemo-nos no espelho, reconhecemos padrões de cultura, comportamento e vestimenta, e naturalmente nos adequamos àquilo, pois nos distinguimos como “categoria”, por assim dizer, de gênero... ou não.
Esse “ou não” é deparado como algo de grande desconforto e desorientação para uma criança.
“Como posso ter um corpo, uma imagem, com a qual não me identifico?”
O que seria para você, pessoa egossintônica [que concorda com seu gênero, seus pensamentos, sua realidade e comportamentos], repentinamente se olhar no espelho e não identificar o que vê? O que você, mulher egossintônica ou homem egossintônico, sentiria se visse no reflexo alguém do sexo oposto, que não condiz com o que acredita ser? Perturbador, não?
Que tipo de sofrimento poderia advir disso? O que pensaria se isso ocorresse em um dia qualquer, ao se levantar da cama?
Evidentemente, que não é algo simples e repentino, porém faz parte de uma série de processos e reconhecimentos ao longo da existência, que, por fim, faz com que coloquemos em foco uma realidade para a qual não acreditamos estar designados, independente de quando seja isso.
De uma forma geral, tende a ocorrer e se tornar um problema logo nos primeiros anos de vida de um indivíduo – externando ele ou não –, ainda que também seja possível permanecer apenas como uma dúvida ao longo dos anos e nada tão expressivo e desagradável a ponto de se manifestar. Pode ser algo que se mantenha adormecido ou surja em algum momento, quando, efetivamente, se depara com algo decisivo, um divisor de águas, algo que não lhe permita negar ou ignorar mais.
A este último caso, podemos remeter Lili Elbe, que, confinada ao corpo de Einar, teve uma breve experiência homossexual em sua infância – ao beijar um amigo – e vestindo-se com um avental, sem, aparentemente, nenhuma expressividade em sua vida. Esse tipo de comportamento infantil é algo muito comum, pois crianças não detêm a maneira como os adultos vêem às situações e condutas. Em nossos primeiros anos de vida, não possuímos orientação sexual ou desagrado em determinadas circunstâncias; não compreendemos como erro ou alguma imposição da sociedade. Esse é o caso do amigo que Einar Wegener beijou, Hanz – interpretado por Matthias Schoenaerts –, que cresceu e se manteve como um homem heterossexual, sem ter surtido efeito na sua orientação sexual ou de gênero.
• Esta é uma outra questão que é absolutamente essencial citar, somente para deixar às claras: a diferença entre o homossexual , transexual e “travesti”.
É extremamente comum de serem confundidas essas três classificações, as quais não têm nenhuma ligação direta. Podem, sim, se conectar de muitas formas, mas não são inerentes umas as outras.
O transexual pode iniciar o seu processo através do travestismo, que seria vestir-se como faz o sexo oposto, porém com o objetivo daquela realidade, de eventualmente realizar a redesignação sexual. Em contraposição, nem sempre a pessoa que pratica o travestismo tem a intenção de mudar de sexo; na verdade, mais de 50% daqueles que têm essa prática não possuem qualquer intenção de se desfazer de seu sexo biológico, assim como – ainda que não chegando a uma maioria esmagadora – também podem não ser homossexuais.
A pessoa dentro da categoria transexual também não obrigatoriamente tem interesse por pessoas do mesmo sexo e deseja realizar sua transição com esse interesse. Por exemplo, um jovem, que deseja se tornar uma mulher, não necessariamente tem atração por homens; sua afinidade sexual pode se encontrar de forma única dentro do escopo feminino, e, ao realizar sua transição, manter seu relacionamento com mulheres, apenas.
O homossexual, por sua vez, é o mais fácil de definir e diferir nesses casos, pois todos sabemos que a gama de homossexuais não travestis ou transexuais é enorme e, verdadeiramente, passam muito longe dessas possibilidades. Podemos colocar aqui, como exemplo do próprio filme, o personagem Henrik [Ben Whishaw], que era homossexual, egossintônico quanto ao seu gênero masculino, sem qualquer comportamento diferenciado e não conseguiu manter algum tipo de envolvimento com Lili, pois esta era uma mulher, apesar de seu sexo biológico. Era um homem, que gostava de homens, sem nenhuma outra variação.
Não é uma questão de probabilidade ou porcentagem desses grupos, mas, sim, a necessidade de deixar de generalizar e confundir. Claro que elas podem se coligar, mas não interferem de forma obrigatória uma a outra. •
Como podemos ver ao longo da película, o pedido de Gerda – para Einar colocar o vestido de bailarina, de forma que pudesse terminar a sua pintura – foi um gatilho para o início de suas dúvidas, novas descobertas e, consequentemente, o sofrimento progressivo de se ver limitada a um estado aparentemente permanente [o corpo masculino].
A atuação de Eddie Redmayne tão brilhante foi, que era possível palpar o sofrimento de Lili.
Presenciamos todas as transformações de comportamento, a forma como se via e desejava se ver, o desgosto e a dificuldade que era tomar a forma masculina, ainda que por um instante; até mesmo os sintomas físicos de náusea, vômitos e comportamento desesperado ao se perceber, uma vez mais, em uma prisão. Mais doloroso do que para Gerda ficar sem marido, muito possivelmente, foi para Lili deixá-la sem a realidade que tanto conhecia. Com toda a certeza não era apenas um sofrimento próprio, mas também o reconhecimento do impacto que isso causa às pessoas ao seu redor; tanto que, em determinado momento, Lili faz o que Gerda tanto desejava: trouxe Einar de volta, ainda que por alguns momentos, mesmo sob um esforço brutal e maldoso a si mesma.
Antes da nossa sociedade começar a tirar a transexualidade da classificação de doenças, era inserida nesse contexto de forma plena e como um transtorno grave, de difícil tratamento. Como pudemos ver, Lili busca ajuda médica com o auxílio de Gerda, de forma que possa melhor lidar com o que com ela acontece e, claro, “curar” o seu problema. Nota-se que, ao longo dessa busca, existe um desconforto óbvio nos olhos, nas expressões, de Lili ao ouvir que era um quadro grave e que tinha que ser revertido, pois não se tratava de algo normal, além do comportamento esquivo e de desprezo dos médicos, que lhe atenderam. Era evidente, que sabia muito bem se tratar de algo irreversível e que fazia parte de sua essência.
Toda essa busca e sofrimento de Lili foi claramente invasiva para Gerda. Esta é uma personagem, que teve suas dificuldades de compreensão, mas que se permitiu, por fim, ver a realidade, que acometia àquela pessoa com quem havia se casado. Os tratamentos eram agressivos, dolorosos, e igualmente ela sofria, por, do mesmo modo, perceber e sentir que não se tratava de uma doença, mas, sim, de uma realidade.
Lili: "Acredito que sou uma mulher."
Gerda: "E eu também acredito."
Ao final, quando, de fato, encontraram um médico, que deu um outro tipo de visão àquela situação, Gerda igualmente concordou também acreditar, que Lili era uma mulher presa ao corpo de Einar. A sua preocupação maior – e, sim, a necessidade de negar uma cirurgia tão agressiva e perigosa para a época – era com a pessoa que amava, independente de que forma fosse, e não com a sua condição.
Ainda assim, Lili desejou se submeter a algo que poderia levá-la à morte, pelo “simples” fato de que aquele sofrimento seria pior do que tal fim.
"Este não é o meu corpo. Eu preciso deixá-lo."
Houve resistência devido a um zelo excessivo por parte de Gerda, mas a compreensão plena que veio, o apoio, era o que Lili necessitava, da mesma forma que, ainda que com menor oportunidade, com Hanz.
Podemos perceber que o apoio, o cuidado e a aceitação daqueles com quem possuía uma real afinidade são essenciais. Houve um momento, no qual Lili pede de forma muito veemente para que Gerda a acompanhe para sua cirurgia; era mais do que óbvio necessitar dela em tal momento de risco. Por maior que fosse a sua vontade, o medo não é algo que podemos controlar e a presença de Gerda tornava Lili forte e capaz de enfrentar.
A resolução final de sua cirurgia não importava, porque Lili estava feliz e completa; e essa é a nossa realidade!
Não existe medicação ou tratamento, que faça com que revertamos a realidade, as nossas crenças, concepções, medos e gostos. Uma pessoa sã, com um discurso coerente e desconfortável consigo mesma, não possui uma doença, mas um problema que temos que resolver: o seu sofrimento.
O único papel do médico nesta situação específica é acabar com o sofrimento, confortar, fazer com que a pessoa tenha a certeza de que não é única, que não está sozinha e que as coisas se ajeitarão conforme o tempo permitir. Hoje temos o aparato, o cuidado e a possibilidade de fazermos uma cirurgia de permuta sexual com sucesso, que pode trazer felicidade a qualquer um que necessitar.
Quanto à família, amigos, cônjuges, por favor, dêem apoio.
Esqueçam do conceito “doença”, esqueçam da “mudança”, esqueçam de tudo o que possa ter um cunho pejorativo e problemático para a sociedade; pensem naquela pessoa que precisa de suporte, carinho e compreensão.
Apenas para finalizar, gostaria de colocar aqui [à esquerda] uma imagem de Einer Wegener ao lado da verdadeira guerreira, Lili Elbe, que transpôs a barreira inicial do preconceito e abriu espaço para os transexuais pelo mundo.
Novamente deixarei a pergunta: o que você faria se acordasse, visse sua imagem no espelho e não reconhecesse o que se mostrasse no reflexo...?
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